Se existem e persistem, hoje, no imaginário do Brasil e do mundo, signos que representam a Bahia, uma grande responsável por isso é a amizade de Jorge Amado, Dorival Caymmi e Carybé. Os três artistas, cada um à sua maneira, na literatura, fotografia e artes plásticas, calcaram durante décadas as culturas, tradições, vivências e religiosidade da Bahia e dos baianos. Não à toa, os três foram nomeados por Mãe Aninha como “Obás de Xangô do Ilê Axê Opô Afonjá, título dado a protetores e amigos do terreiro.
Quando em 1939, “O que é que a baiana tem?”, composta por Caymmi, estourou na voz de Carmen Miranda, o mundo se voltou à Bahia. Com essa pergunta e as sucessivas respostas – “pano-da-costa”, “brinco de ouro” e “bata rendada” – o imaginário sobre o estado começou a se formar. Na mesma época, Jorge Amado já havia escrito “Jubiabá”, “Capitães de Areia” e “Mar Morto”, que, a partir de diferentes vertentes, contavam a crônicas vividas na Bahia e em Salvador.
“No decorrer do século 20, a Bahia era um lugar que estava em muita evidência e que estava passando por muitos projetos, tanto de modernização como de uma imagem que queria mostrar pro contexto brasileiro. A partir dos anos 30, vamos ter no cenário cultural, artístico e literário baiano, soteropolitano, diversas iniciativas extremamente significativas”, destaca o historiador Rafael Dantas.
Mas foi só a partir das décadas de 50 e 60 que a baianidade já cantada e contada por Caymmi e Dorival passou a ser ilustrada pelo argentino Carybé. As diversas técnicas do artista construíram, através das aquarelas e esculturas, ideais da religiosidade e do cotidiano vividos na Bahia. Os anos 60 e 70 foram cruciais para a consolidação do que a Bahia se tornaria no imagético popular, com os lançamentos de “Gabriela, Cravo e Canela” e “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, que viraram série e filme, respectivamente.
“Jorge Amado vai estar inserido nesse processo com livros que mostram um pouco de identidade local, da simplicidade do povo, da magia da Bahia e dos encontros de culturas que formaram a nossa é realidade, também de uma forma crítica. Caymmi, nesse mesmo momento, tanto aqui na Bahia, como, principalmente, no Rio de Janeiro, capital federal à época, com suas músicas, vai ser esse grande representante da Bahia, dos seus encantos e de Salvador”, explica Dantas.
Movido por essa força motriz de Caymmi e Jorge sobre a Bahia, Carybé chega à Bahia na década de 50 para ilustrar o que estava sendo cantado e letrado pela dupla baiana. “Então o que temos hoje de identidade, de imaginário construído sobre essa estética baiana, que foi moldada ao longo do tempo bebe diretamente nessa influência artística e cultural de Jorge Amado, Carybé, Caymmi. O que temos hoje, de uma noção de Salvador, da Bahia e de suas festas, perpassa pela influência deles”, completa o historiador.
Três Obás de Xangô
Inspirado nesta tríade, especialmente pelo fio condutor único dos três – o candomblé -, nasceu Três Obás de Xangô, documentário do cineasta baiano Sérgio Machado, que aborda a amizade do músico soteropolitano, do escritor itabunense e do pintor argentino radicado baiano. Já premiado no Festival do Rio em 2024, a obra ganhou sessão exclusiva na noite desta quarta-feira (29), no Cine Glauber Rocha, em Salvador, quando os convidados conheceram um pouco mais da intensa relação deles com a Bahia e com a religião de matriz africana.
“Mais do que inventores da Bahia, eles são tradutores de uma Bahia inventada na verdade pelas mães de santo – Mãe Aninha, Mãe Senhora, Mãe Stella, Stella – acho que a Bahia foi inventada por mulheres pretas e levada adiante diversas pessoas, inclusive por eles três”, diz Machado.
Seja no painel “A Colonização do Brasil” de Carybé, na fachada do Edifício Bráulio Xavier, na subida da Rua Chile, na Itapuã saudosa cantada por Caymmi ou no Rio Vermelho tão habitado por Jorge, é possível enxergar tudo aquilo que inspirou os três e como as suas obras seguem retroalimentando o potencial inesgotável de Salvador e da Bahia.
Na foto: Jorge Amado, Dorival Caymmi e Carybé (crédito: reprodução)